Soja se torna a principal fonte de renda da agricultura familiar no RS
Grão responde por R$ 1 de cada R$ 5 gerados pelos pequenos produtores gaúchos, de acordo com o Censo Agropecuário de 2017
Geralmente associada a grandes áreas de terras, a produção de soja se consolidou como a principal fonte de renda da agricultura familiar no Rio Grande do Sul. De acordo com o Censo Agropecuário de 2017, divulgado recentemente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o valor bruto da produção (VBP) da oleaginosa atingiu R$ 3,99 bilhões somente em propriedades familiares.
A renda da soja entre os pequenos cresceu 254% no Estado na comparação com o censo anterior, de 2006. Naquela ocasião, a cultura tinha VBP de R$ 1,12 bilhão e ficava atrás de fumo e milho. Hoje, o grão representa 20% do faturamento das unidades familiares, que alcança R$ 20,26 bilhões. Ou seja, é responsável por R$ 1 de cada R$ 5 gerados dentro das porteiras. Em 2006, correspondia a 12% do total.
– Em razão do preço e da garantia certa de comercialização, a soja atrai todo tipo de produtor. Dificilmente se encontra outro produto em escala que remunere da mesma forma. Por isso, cresceu no Estado todo, não só na agricultura familiar – constata Luis Eduardo Puchalski, coordenador do Censo Agropecuário no Estado.
A soja está em 76 mil das 293,8 mil propriedades familiares no Estado, o equivalente a 26% do total. Em 2006, aparecia em 24% dos estabelecimentos. Em um contexto de envelhecimento da população rural e dificuldades em encaminhar a sucessão nas pequenas propriedades, o economista-chefe da Federação da Agricultura no Estado (Farsul), Antônio da Luz, destaca que o grão tem papel importante:
– A soja combate esse problema. Ela dá aumento de receita, que compete com a aposentadoria e com a ida dos jovens à cidade. Não quer dizer que seja a solução da agricultura familiar, mas o grão dá incentivos.
Professor de sociologia do desenvolvimento rural e estudos alimentares da UFRGS, Sergio Schneider vê com preocupação o aumento da dependência da soja nas propriedades familiares.
– Boa parte da riqueza gerada pela soja acaba ficando na mão das grandes cooperativas, tradings e lojas que vendem tratores e agrotóxicos. Os agricultores acabam tendo que se virar para arrendar mais terra para poder plantar e sobreviver – argumenta.
A necessidade de pouca mão de obra para manejar a lavoura e as dificuldades enfrentadas em atividades tradicionalmente desenvolvidas nas propriedades familiares, como a pecuária de leite, fizeram com que muitos agricultores intensificassem o foco na soja.
Estímulo pelo aumento de demanda e biodiesel
Com a crescente demanda, puxada principalmente pela China, o grão passou a ser visto como alternativa segura para a obtenção de renda. Outro atrativo está no setor de biodiesel nacional, que é obrigado a adquirir parte da matéria-prima junto à agricultura familiar.
– O que salda as contas, ao final, é a soja. O produtor tem liquidez, pagamento à vista, o que não costuma encontrar em outras atividades. Então, a tendência é de que a soja continue ganhando espaço – projeta Luis Fernando Fucks, presidente da Associação dos Produtores de Soja do Rio Grande do Sul (Aprosoja-RS).
No caso do produtor Adilson Hintz, de Coronel Barros, no noroeste do Estado, a soja literalmente quitou dívidas. Há cerca de 10 anos, ele pegou empréstimo bancário para viabilizar o plantio de uma safra de milho. No entanto, a venda das sacas não compensou o custo de produção. Hintz só conseguiu cobrir o prejuízo com a receita obtida na soja. Desde então, começou a se voltar somente à oleaginosa, que hoje ocupa integralmente os 50 hectares de lavoura.
– Optamos por uma cultura e por fazer ela bem feita. Nossa renda aumentou pelo crescimento da produtividade e também pelo preço bom nos últimos anos – pontua.
Na última safra, Hintz colheu 77 sacas por hectare e espera superar a marca de 80 sacas na próxima. Há uma década, a média por hectare não superava as 50 sacas em sua propriedade. Ele constata que a tecnologia foi fundamental para a evolução do desempenho, já que máquinas e insumos de maior qualidade passaram a ficar acessíveis aos agricultores de pequeno e médio portes.
Produtividade puxa expansão da renda
O incremento de renda da soja passa, diretamente, pelo aumento da produtividade. Entre 2006 e 2017, segundo dados do IBGE, houve leve redução da área nas propriedades familiares gaúchas, passando de 1,2 milhão para 1,1 milhão de hectares. Ao mesmo tempo, o volume colhido saltou de 2,7 milhões para 3,9 milhões de toneladas. Sendo assim, a média por hectare passou de 36 para 55 sacas no período abrangido pelo Censo Agropecuário.
O diretor técnico da Emater, Alencar Rugeri, lembra que as condições de plantio são praticamente as mesmas em grandes e pequenas propriedades. O especialista aponta que a soja é uma das poucas culturas em que produtores de portes distintos conseguem utilizar as mesmas tecnologias. No entanto, ressalta que o pequeno necessita ser mais eficiente na gestão para que a soja se torne rentável, já que não consegue competir em escala com o grande e, portanto, tem menor margem.
– Se tu pensas em plantar soja, tens tudo ao alcance da mão. A estrutura produtiva do grão tomou dimensão que facilita a aquisição de insumos, de produtos, de tecnologia. É algo que dificilmente ocorre em outras culturas – compara Rugeri.
O plantio também vem se espalhando por diferentes regiões do Estado. Áreas que até pouco tempo atrás pareciam impróprias para a oleaginosa se mostraram produtivas, sobretudo na Metade Sul. De olho na possibilidade de incremento na renda, o produtor Valério Brose, de São Lourenço do Sul, passou a investir no cultivo. Ao lado do pai, Waldiro, da mãe, Geni, do irmão, Valnei, e da cunhada Patrícia, ele toca uma propriedade com gado leiteiro e milho. Em 2016, buscou terras no município para plantar soja.
– Tu vendes leite para comprar a comida da vaca, praticamente não tem lucro. Seria quase impossível viver só do leite, então começamos com a soja, pois dá retorno rápido. Hoje, é nosso carro-chefe – conta Brose.
O produtor cultiva o grão em cerca de 60 hectares arrendados de vizinhos, a maioria deles aposentados do campo. O “aluguel” é pago com parte da produção. Após as primeiras safras, Brose recorreu ao crédito voltado à agricultura familiar para investir R$ 400 mil em máquinas. Assim, adquiriu uma plantadeira e um trator, com direção hidráulica e cabine com ar condicionado. Desde então, aumentou o rendimento de 60 para 65 sacas por hectare, em média. A colheita é comercializada com tradings de commodities agrícolas.
Dependência da cultura acende alerta
A soja tornou-se a principal ou até mesmo a única cultura plantada em diversas propriedades familiares no Rio Grande do Sul. Os recenseadores do Censo Agropecuário notaram que, em determinados locais do Estado, o grão ganhou espaço em substituição ao milho, ao feijão e à produção de leite, entre outras atividades. Mesmo que a oleaginosa tenha se transformado em fonte de renda estável para muitos agricultores nos últimos anos, há quem veja com ressalvas a perspectiva de continuidade desse movimento de migração.
– Enquanto tivermos preço alto na soja, como estamos tendo, e baixo nas outras culturas, vamos ver uma debandada dos produtores para a soja. É algo perigoso para o produtor e para o Estado – alerta Carlos Joel da Silva, presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag-RS).
Silva lembra que, hoje, as condições climáticas e mercadológicas estão favoráveis à soja, mas argumenta que a dependência do grão pode trazer problemas mais adiante, em caso de estiagem, por exemplo. Neste sentido, ressalta que a cultura é uma das mais sensíveis à seca de grandes proporções, algo que não acontece no Estado desde 2012. Além disso, como a demanda atual é puxada pela China, qualquer problema envolvendo o gigante asiático pode afetar o mercado para o produto.
No Rio Grande do Sul, a soja sempre teve vinculação importante com a agricultura familiar, recorda Sergio Schneider, professor de sociologia do desenvolvimento rural e estudos alimentares da UFRGS. O que mudou nos últimos anos foi o surgimento do “fator China”, que aliado ao envelhecimento da população rural e às facilidades proporcionadas pelo avanço da tecnologia, motivou investimentos. Além da dependência de uma única cultura, Schneider vê outros pontos de alerta:
– A soja é altamente intensiva em uso de agrotóxicos, que deixam um passivo ambiental. Esse é o grande problema, cria impactos até sobre outras atividades. Tivemos recentemente o problema da mortandade das abelhas – lembra, referindo-se à aplicação incorreta de um inseticida nas lavouras.
Neste contexto, Schneider reforça que a exposição do agricultor familiar aos químicos vem crescendo. De acordo com o Censo Agropecuário, 70,2% dos estabelecimentos rurais gaúchos utilizaram algum agrotóxico em 2017. Em 2006, o índice era de 62%.
O que é uma propriedade da agricultura familiar
Para enquadrar uma propriedade como familiar, o IBGE utiliza como base a Lei 11.326/2006, que estabeleceu a Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais, e o decreto 9.064/2017, que instituiu o Cadastro Nacional da Agricultura Familiar. Neste sentido, são levados em consideração quatro aspectos:
- A área da propriedade deve ter até quatro módulos fiscais. No Rio Grande do Sul, cada módulo pode equivaler de cinco a 40 hectares, dependendo do município. Os valores exatos para cada localidade são determinados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
- No mínimo, metade da força de trabalho utilizada no processo produtivo e de geração de renda necessita ser familiar.
- Pelo menos metade da renda familiar deve ser proveniente de atividades desenvolvidas na propriedade rural.
- A gestão do estabelecimento precisa ser estritamente familiar.